Bipolaridade: o que é e como tratar
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Dr Janrier Wendel
8/18/20256 min read


Bipolaridade: o que é e como tratar
A bipolaridade, ou transtorno bipolar, é uma condição de saúde mental caracterizada por oscilações marcantes de humor, energia e nível de atividade que vão além das variações normais do dia a dia. Essas mudanças aparecem em episódios de mania/hipomania (humor elevado, euforia ou irritabilidade, energia aumentada) e depressão (tristeza persistente, perda de interesse, baixa energia). Embora seja uma condição crônica, há tratamentos eficazes que permitem levar uma vida plena, produtiva e com boa qualidade.
O que é o transtorno bipolar?
Definição clínica: segundo sistemas diagnósticos como DSM-5-TR e CID-11, o transtorno bipolar envolve episódios distintos:
Mania: humor anormal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável por pelo menos uma semana (ou qualquer duração se houver necessidade de hospitalização), com sintomas como autoestima inflada/grandiosidade, redução da necessidade de sono, fala acelerada, ideias aceleradas, aumento de atividade dirigida a objetivos, impulsividade e comportamentos de risco.
Hipomania: sintomas semelhantes à mania, porém menos intensos e com duração mínima de 4 dias, sem prejuízo funcional tão marcante ou necessidade de hospitalização.
Depressão bipolar: humor deprimido, anedonia, alterações de sono e apetite, fadiga, culpa/excesso de autocrítica, dificuldade de concentração, podendo incluir pensamentos suicidas.
Especificador de características mistas: sintomas de polos opostos ocorrem juntos (ex.: depressão com agitação e fala acelerada), o que demanda atenção terapêutica específica.
- Subtipos principais:
Bipolar I: pelo menos um episódio maníaco (muitas vezes alternando com depressão).
Bipolar II: episódios de depressão maior e hipomania (sem episódios de mania plena).
Ciclotimia: flutuações crônicas de humor com sintomas subclínicos de hipomania e depressão por períodos prolongados.
Prevalência e curso: estima-se que 1% a 2% da população tenha transtorno bipolar ao longo da vida. O início costuma ocorrer no fim da adolescência ou início da vida adulta. É comum haver recorrência dos episódios, mas o tratamento contínuo reduz recaídas.
Causas e fatores de risco
A bipolaridade tem origem multifatorial, combinando predisposição biológica e fatores ambientais:
Genética: alta herdabilidade (estimada entre 60% e 80%). Ter um parente de primeiro grau com bipolaridade aumenta o risco.
Neurobiologia: alterações em circuitos cerebrais ligados à regulação do humor, sistema dopaminérgico/serotoninérgico e mecanismos inflamatórios e de estresse oxidativo têm sido associados.
Ritmos circadianos e sono: instabilidade do ciclo sono-vigília e eventos que “desalinharem” o relógio biológico podem precipitar episódios.
Estressores psicossociais: perdas, traumas, uso de substâncias e mudanças de rotina relevantes podem desencadear ou agravar episódios.
Comorbidades: ansiedade, TDAH, transtornos por uso de substâncias e condições clínicas (p. ex., distúrbios tireoidianos) podem complicar o quadro.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é clínico, feito por psiquiatra ou equipe especializada, com base em:
Entrevista detalhada sobre sintomas, duração e impacto funcional.
Histórico familiar, uso de substâncias e comorbidades.
Exames laboratoriais para afastar causas orgânicas que imitam sintomas (p. ex., disfunção tireoidiana).
Escalas de triagem e acompanhamento, como o MDQ (Mood Disorder Questionnaire), podem ajudar, mas não substituem a avaliação clínica.
Diferenciar bipolaridade de depressão unipolar, TDAH e transtorno de personalidade borderline é essencial, pois o manejo muda significativamente.
Tratamento: abordagem multimodal e contínua
O tratamento mais efetivo combina medicamentos, psicoterapia, educação sobre o transtorno e ajustes de estilo de vida. As recomendações a seguir refletem diretrizes internacionais (como CANMAT/ISBD, NICE) e evidências consolidadas.
1) Medicamentos com eficácia comprovada
- Estabilizadores do humor:
Lítio: referência clássica no tratamento de mania aguda e na prevenção de recaídas maníacas e depressivas. Há evidência de efeito protetor contra suicídio. Requer monitoramento de níveis séricos, função renal e tireoidiana.
Valproato (ácido valproico/divalproato): eficaz na mania aguda e como manutenção. Evitar em gestantes ou mulheres em idade fértil sem planejamento devido a riscos teratogênicos.
Lamotrigina: útil especialmente na depressão bipolar e manutenção para prevenção de episódios depressivos; não é eficaz para mania aguda. Ajuste gradual para reduzir risco de rash cutâneo.
Carbamazepina: opção em mania e manutenção, geralmente quando outras opções são insuficientes ou não toleradas.
- Antipsicóticos atípicos:
Quetiapina: eficaz na mania, na depressão bipolar e na manutenção.
Olanzapina: útil na mania e manutenção; a combinação olanzapina + fluoxetina é opção para depressão bipolar, mas atenção ao ganho de peso e ao perfil metabólico.
Aripiprazol, risperidona (incluindo formulações de longa ação), ziprasidona, asenapina e cariprazina: opções com evidência em mania e, para alguns, em manutenção e depressão bipolar (ex.: quetiapina e cariprazina na depressão bipolar; lurasidona tem evidência em depressão bipolar como monoterapia ou adjuvante ao lítio/valproato).
Antidepressivos: não são primeira linha na depressão bipolar. Quando usados, devem ser adjuvantes a um estabilizador do humor, devido ao risco de “virada” maníaca e de ciclagem rápida. Diretrizes recomendam cautela e avaliação caso a caso.
ECT (eletroconvulsoterapia): opção segura e eficaz em casos graves, com sintomas psicóticos, catatonia, alto risco de suicídio ou resistência a tratamentos farmacológicos.
A escolha do esquema depende do tipo de episódio, histórico de resposta, comorbidades, perfil de efeitos colaterais e preferências do paciente. O acompanhamento regular e o ajuste gradual são essenciais.
2) Psicoterapias baseadas em evidências
Psicoeducação: ajuda a reconhecer sinais precoces de recaída, aderir ao tratamento, organizar rotina e envolver familiares.
Terapia cognitivo-comportamental (TCC): aborda pensamentos e comportamentos que perpetuam ciclos de humor, melhora habilidades de enfrentamento e adesão.
Terapia interpessoal e do ritmo social (IPSRT): trabalha rotinas diárias (sono, alimentação, atividades) para estabilizar ritmos biológicos, reduzindo recaídas.
Terapia focada na família: melhora comunicação e resolução de conflitos, reduzindo estresse familiar, associado a menor taxa de recaída.
Mindfulness e estratégias de regulação emocional: podem complementar, melhorando atenção plena e resposta ao estresse.
Meta-análises indicam que essas abordagens reduzem recaídas, melhoram funcionamento psicossocial e adesão ao tratamento quando associadas à farmacoterapia.
3) Estilo de vida e autocuidado
Sono e rotina: manter horários regulares para dormir e acordar é uma das medidas mais protetoras. Evitar privação de sono e “viradas” noturnas.
Atividade física: exercícios aeróbicos e de força, 150 minutos semanais quando possível, reduzem sintomas depressivos, melhoram sono e saúde metabólica.
Alimentação e hábitos: dieta equilibrada, atenção ao peso (alguns fármacos podem induzir ganho ponderal), moderação de cafeína, evitar álcool e drogas recreativas.
Gerenciamento do estresse: técnicas de relaxamento, respiração, terapia, organização da agenda e limites saudáveis.
Monitoramento: registros de humor, aplicativos ou planilhas para acompanhar sono, energia e gatilhos; compartilhar com a equipe de saúde.
Cuidado!
Risco de suicídio: pessoas com bipolaridade têm risco aumentado de ideação e tentativas de suicídio, especialmente em episódios depressivos e mistos. Avaliação contínua de risco e plano de segurança são imprescindíveis. O lítio tem evidência de redução de comportamento suicida.
Comorbidades clínicas: maior prevalência de síndrome metabólica, diabetes tipo 2, dislipidemias, hipertensão e doenças cardiovasculares. Acompanhamento clínico regular é parte do tratamento.
Gravidez e pós-parto: planejamento é fundamental.
Evitar valproato na gestação devido a alto risco teratogênico.
Lítio pode ser considerado com monitoramento rigoroso; risco teratogênico absoluto é baixo, porém presente, e exige decisão compartilhada.
Lamotrigina é frequentemente considerada entre opções com perfil mais favorável na gestação, embora ainda requeira avaliação de risco-benefício.
O período pós-parto é de alto risco para recaída; plano preventivo é essencial.
Adolescência e início precoce: diagnóstico e intervenção cedo podem reduzir impacto em escolaridade e desenvolvimento. Envolver a família e escola melhora desfechos.
Idosos: maior sensibilidade a efeitos adversos e interações medicamentosas; ajustes de dose e vigilância clínica são necessários.
Prognóstico e adesão: o que esperar
Com tratamento adequado e continuidade de cuidados, muitas pessoas alcançam estabilidade prolongada e alta qualidade de vida. Fatores que melhoram o prognóstico incluem:
Adesão consistente ao plano terapêutico.
Reconhecimento precoce de sinais de recaída e ajuste rápido do tratamento.
Rotina estável de sono e atividades.
Suporte social e familiar.
Gestão ativa de comorbidades (mentais e clínicas).
As recaídas são parte do curso natural do transtorno, mas a frequência e a gravidade podem ser substancialmente reduzidas com uma abordagem estruturada e persistente.
Quando procurar ajuda imediatamente
Ideias de suicídio ou planos de autoagressão.
Sintomas psicóticos (delírios ou alucinações).
Mania severa com comportamentos de alto risco.
Depressão profunda com incapacidade de realizar atividades básicas.
Nessas situações, marque uma consulta urgente.
Mitos e Fatos
“Antidepressivo resolve depressão bipolar sozinho.” Falso. Antidepressivos isolados podem piorar o quadro; devem ser usados com estabilizador e não são primeira linha.
“Bipolaridade é só mudança de humor.” Falso. Trata-se de uma condição neuropsiquiátrica complexa, com impacto significativo no funcionamento e saúde física.
“Tratamento é temporário.” Para a maioria, manutenção de longo prazo reduz recaídas e complicações.
Referências e diretrizes
Diretrizes CANMAT/ISBD para transtorno bipolar (atualizações recentes; manejo de mania, depressão e manutenção).
NICE Guideline CG185: Bipolar disorder: assessment and management (atualizada em 2020).
DSM-5-TR (American Psychiatric Association): critérios diagnósticos.
CID-11 (OMS/WHO): classificação internacional de doenças.
Revisões sistemáticas e meta-análises em periódicos como The Lancet Psychiatry, JAMA Psychiatry e Cochrane Reviews sobre farmacoterapia e psicoterapias no transtorno bipolar.